DOMINGOS DOS REIS QUITA
( Portugal )
Domingos dos Reis Quita (Lisboa, São Sebastião da pedreira, 6 de Janeiro de 1728 — Lisboa, 26 de Agosto de 1770) foi um poeta português de origens humildes. Quita foi participante ativo da Arcádia Lusitana, que visava uma reforma na poesia e na mentalidade da sociedade portuguesa da época, bem como representante do bucolismo.
Domingos dos reis Quita escreveu tragédias como: Astarto. Mégara, Hermíone, Licore e Ines de Castro.
NO LAMENTÁVEL TERREMOTO
(Silva)_
Ó soberano Autor da Luz Eterna,
Por quem a redondeza se governa,
Da variável Máquina do Mundo,
Que dessa imensa altura, e do mais fundo
Lá do abismo os segredos só compreendes,
E a toda parte o imenso braço estendes,
Da tua Sempiterna Omnipotência
Dispendendo os tesouros da clemência,
Ou o raio vibrando do castigo,
Assisti-me no empenho, em que prossigo;
Aos pesarosos ecos do meu Canto
O alto furor da tua graça inspira,
Para que cantar possa ao som do pranto
O misterioso efeito da tua ira,
Que sé em meu favor és, ó Deus, Soberano,
Farei mais do que pode um peito humano;
Farei, que de temor fique sentindo
Sustos, o coração mais obstinado,
O espetáculo mais horrendo ouvindo,
Que até agora os humanos têm chorado.
Quanto, ó mortais, vos ponho aqui patente,
Não é informação da vaga gente:
Nem notícia também da antiga História,
Escrita para assombro da memória:
Eu no perigo ainda me suponho
Do lamentável caso, que proponho,
Do susto macilentos os semblantes,
Os juízos incertos, vacilantes;
Inda os quebrados olhos rasos de água
Mostram a dor de tão terrível mágoa.
Doirava o Sol nas Terras do Ocidente
As montanhas da parte do Nascente,
E nos profundos vales inda as flores
Não gozavam seu belos esplendores
Naquele grande dia, em que festeja
Os Santos todos a Romana Igreja:
Quando a Terra as entranhas revolvendo,
Com forte impulso, com estrondo horrendo
Dentro em seus próprio âmbitos se abala;
E as medonhas gargantas toda estala;
Move-se o monte, move-se a Cidade,
Como as ondas na grande tempestade,
Da iminência da Terra se despenha
Em pedaços desfeita a tosca penha;
Rodam uns para o vale, e vão matando
O rebanho, que andava ali pastando,
Ficam outros aberto, e estalados
Na destroçada rocha debruçados;
Precipita-se a torre, e faz a ruína
Maior do edifício, em que se inclina;
Caem os Templos, os Pórticos se abatem,
Os muros com os muros se combatem;
O edifício, que foi mais levantado,
Mais horroroso acaba destroçado,
E os Homens este estrago, esta desgraça
A uns sepulta, a outros despedaça.
O pó se espalha em nuvens denegridas,
Ficam do Sol as luzes confundidas,
Toda a região do ar se desfigura,
Troca-se o dia claro em noite escura,
Que a todos parece nesta estranheza
Se tinha pervertido a natureza.
Em confusos túmulos levantados
Adam todos os suste trespassados,
Quebrantam dos Divinos Exercícios
Os mesmos Sacerdotes os preceitos,
Deixando os Sacratíssimos Sacrifícios
Nos Sagrados Altares imperfeitos.
Qual se vê sem acordo, e sem sentido
Correndo pelas ruas revestido,
Qual sai do Coro tímido, e absorto,
Qual sobre as Aras fica morto.
Que coração por forte, ou resoluto
Pode aqui conservar o rosto enxuto?
Braços, pernas se vêem despedaçada,
E as cabeças dos corpos separadas,
De alguns se ouvem os míseros acentos,
Já exalando os últimos alentos;
E destes miseráveis os gemidos
Ferem o coração pelos ouvidos;
Ao mimoso filhinho nos seus braços
Conserva a morta Mãe feito em pedaços:
Ali outro se vê bebendo exangue
As lágrimas envoltas no seu sangue.
Correm muitos gritando alvoroçados
Duvidosos, confusos espantados.
Aquele, que assustado vai correndo,
Os olhos, e as mãos aos Céus erguendo
De seus erros perdão a Deus implora,
Vendo chegada aquela horrível hora,
Em que o peso da culpa com violência
Carrega a compreendida consciência;
E alguns em pesarosos, e altos gritos
Aturdidos confessam seus delitos.
Ainda os olhos bem não se informavam
Da causa por que as lágrimas choravam,
Quando na confusão dos alaridos
Correndo ainda mais espavorido,
Fujam, fujam, gritando vêm da praia,
Que já pela Cidade o Mar se espraia;
Aqui de novos sustos combatido,
Confuso cada um perde o sentido,
O coração de todo se esmorece,
O sangue gela, o alento desfalece;
Qual o rebanho, que em chuvoso dia
Nas margens da ribeira anda pastando,
Que a relva deixa saborosa, fria,
E a toda a pressa os montes procurando
Tímido foge da impetuosa enchente;
Tal a confusa, e lastimada gente
Para os cumes dos montes vai subindo,
Ao ímpeto feroz do Mar fugindo.
Este quase nu, outro mal composto,
Sem que atrás volte o desmaiado rosto,
Vai fugindo veloz, que em mal tão forte
Só sente atrás de si correr a morte.
Debaixo das ruínas vê gemendo
O Marido a Esposa, e vai correndo;
Deixa em tanto perigo sem cautela
O forte pai a tímida Donzela;
Deixa a Mãe o filhinho tenro, e caro,
Desampara o tesouro o mais avaro,
As fortes armas deixa o valoroso,
E os lúcidos ornatos o vaidoso.
Com apressado passos os que errantes
Refúgio para a vida andam buscando,
Aos cadáveres inda palpitante,
Como insensíveis, vão atropelando,
Esquecidos da natural piedade:
(Ó! Poder da fatal calamidade!)
O que a alma não tinha inda exalado,
Gemendo entre as ruínas sepultado,
Ao que vai livre roga que lhe acuda,
Em vão lhe clama, em vão lhe pede ajuda,
Que este só na aflição de tanta lida
Ao largo campo vai salvar a vida.
Alguns, em quem mais pode o impulso terno
Do afecto conjugal, e amor paterno
Das ruínas as pedras levantando,
Muitas vidas ainda iam salvando.
Quando o hórrido fogo a chama ateia,
E da Cidade os âmbitos rodeia.
Vistes o seco mato em monte unido,
Em que o violento lume se derrama,
Que num instante se vê todo incendido
No rigorosos ardor de uma só chama.
Assim logo se acende, assim se enreda
Por toda parte a horrenda lavareda;
O Pai já de salvar ao filho a vida
A esperança de todo vê perdida,
Vendo do fogo ser consumido,
Sem que dele se possa socorrido:
Todos fogem, e tudo desamparam;
Somente para a morte se preparam.
Qual Lavrador, que da alta serra vendo
A própria seara estar no campo ardendo
(Prémio feliz do rústico exercício)
Que em tanto dano, em tanto desperdício
A vista emprega atónito, e pasmado
Sem esperar já vê-lo remediado
Assim os moradores infelices
Da antiga fundação do Grego Ulisses
Aturdidos estão sem desafogo.
A amada Pátria vendo entregue ao fogo.
Toda a pompa acabou, foi transitória,
Já não há mais que a fúnebre memória,
Da famosa Cidade, que algum dia
Tanto os cristais do Tejo enriquecia;
Agora só de horror a vista atroa
O largo campo, aonde foi Lisboa.
Nada se vê, que fosse portentoso,
Que não seja espectáculo horroroso:
Não se distingue do rústico penedo,
O tosco muro, o pórtico lavrado,
O mesmo assombro causa, o mesmo medo.
O Palácio, que em ricos pavimentos
Sustentava luzidos ornamentos,
Desfeito em cinzas já se não descobre
Se acaso foi Palácio, ou casa pobre.
As ruas, em que a multidão da gente
Se via sem cessar continuamente,
Agora se vêem tristes, e desertas,
De funestas ruínas só cobertas:
Não se ofrecem à vista outros objectos
Mais, que horrendos, medonhos esqueletos.
Não há torre, muralha, ato colosso,
Que dano não sentisse em tal destroço,
Nem pedra, que em próprio desconcerto
Não dê de tanto estrago indício certo.
Vêem-se os campos, e os montes povoados
De feridos, aflitos, e magoados:
Aqui falam, abraçam-se os amigos,
E também já sem ódio os inimigos:
Os Irmãos uns aos outros aparecem
Em tal estado, que se não conhecem.
Incerta a Esposa ali busca o Marido,
Que por mais certo o julga já perdido;
Aqui outra o encontra, e mais se cansa
Na ânsia, com que ao Esposo os braços lança.
E para lhe explicar de vê-lo o gosto,
Neles o aperta unindo rosto a rosto,
Que explicar inda mais não pode a boca
Que os soluços do pranto, que a sufoca;
E nisto se demora alguns espaços,
Que inda não crê, que o tem entre os braços.
Com ansioso clamor, com desatino
Pela perdida Mão chora o menino;
Para a Mulher, que ao longe lhe aparece,
Correndo vai, a mesma lhe parece;
Mas quanto alento cobra nesse engano
Lhe troca em dura mágoa o desengano.
Outro, que a idade faz mais inocente
Pergunta pela Mãe a toda gente.
Chorosa ali se vê vagando errada
A donzela do Pai desamparada.
Andam outras descalças, mal vestidas,
Ao acaso as madeixas esparzidas
Lhe pendem sobre os olhos lacrimosos;
Feridos trazem já os pés mimosos
Das destroçadas pedras, dos espinhos,
Que pisam pelos ásperos caminhos;
Correm também a mesma desventura
As Esposas de Cristo sem clausura.
Ai, imenso Senhor, se bem reparo
No perigo de tanto desamparo,
Confundo-me, desmaio, pasmo, tremo,
Que da tua ira um novo impulso temo:
Temo, Senhor, que a ocasião tão pronta
Mais esforço dê a tua afronta;
Inda os olhos do pranto dão indício,
E o coração já segue o torpe vício.
Mas ó! Deus infinito, ó Deus piedoso!
Que castigo darás tão rigoroso,
Que possa ser inteira recompensa
Da nossa culpa atroz, da nossa ofensa?
Só tua clementíssima bondade
É maior que a nossa atrocidade:
Olha, Senhor que pelo mais culpado
De Cristo foi o Sangue derramado.
(SILVA NO LAMENTÁVEL TERREMOTO DE NOVEMBRO DE 1755...1756)
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Página publicada em maio de 2022
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